A loucura nas amizades
E se agora vos provasse que sou eu que dou origem a todas as amizades? Nada mais fácil. Vou explicar-vos a coisa, tão claramente como o dia. Mas, para isso, não empregarei nem dilemas, nem sorites, nem nenhum desses raciocínios capciosos, de que ordináriamente se servem os nossos subtis lógicos. Contentar-me-ei em seguir as luzes do senso comum. Vou pois, começar.
Fechar os olhos sobre os desmandos dos amigos, iludir-se com os seus defeitos, imitá-los, amá-los mais do que as próprias qualidades o merecem, admirar os seus vícios como se fossem virtudes, não será a isso que se chama loucura? Esse amante que beija com paixão um sinal que descobre na pele da amada; o outro que aspira com voluptuosidade o hálito fétido do seu amor; esse pai, cujo filho tem os olhos tortos, e lhe encontra o olhar mais terno, não constituirá tudo isto a mais pura loucura? Ah, sim, digam, se quiserem, que são loucuras e das mais rematadas; mas concordem, no entanto, que são loucuras que criam e mantêm as amizades. Não me estou a referir senão aos mortais, que nascem com todos os defeitos (...)
Cupido, autor e pai de todas as ligações amáveis, não é um deus cego? Não toma, muitas vezes, a fealdade pela beleza? Por causa dele, todos os homens sentem alegria no objecto do seu amor; por causa dele, é que o velhote ama a sua velha companheira, como o moço ama a sua jovem amante. É isto que se vê por toda a parte, e é isto que sempre se acha ridículo. Mas, no entanto, esse ridículo é que forja e reforça os elos da amizade.
O que acabo de dizer, acerca da amizade, aplica-se muito melhor ao casamento. Meu deus! Que infinidade de divórcios, de acontecimentos desastrosos se não daria todos os dias, se a lisonja, a condescendência, a dissimulação e os outros artifícios que todos são figuras da minha comitiva, não alimentassem incessantemente a união do homen e da mulher! Ah! como veríamos realizarem-se poucos casamentos, se o futuro noivo tivesse a prudência de se informar com cuidado de todas as diabruras que a sua jovem Agnes, que tão modesta e tão reservada parece, fez antes do casamento! E mesmo daqueles casamentos que se chegam a realizar, quantos haveria em que a união se mantivesse por longo tempo, se a negligência e a imbecilidade dos maridos os não cegasse, no que se refere aos modos e aos gestos das suas queridas esposas? Tudo isto temos de convir, não passa de loucura. Mas, no entanto, é esta loucura que faz com que a mulher agrade ao marido, e o marido á mulher; é ela que mantém a paz nos lares e impede os rompimentos e os divórcios. Troçam dos maridos, chamam-lhes enganados, chamam-lhes cornudos, e sei la quantos nomes feios, enquanto que o pobre homem seca com os seus beijos e as suas finjidas lágrimas da esposa infiel. Mas, não será ele muito mais feliz, por se entregar a este doce enlêvo, do que se se abandonasse aos tormentos e às inquietações, se se deixasse devorar de ciúmes, e se espalhasse, por toda a parte, a confusão e a desordem com cenas violentas ou trágicas?
Em suma, se não fosse eu, não se encontraria na vida, nem uma só ligação que fosse, agradável e duradoura. Se não fosse eu, pouco tempo depois de reinar, o monarca tornar-se-ia insuportável para o seu povo, o criado para o amo, o mestre para o discípulo, o marido para a mulher, o hóspede para o hospedeiro, o camarada para o seu camarada, se não se preocupassem em se alimentar, mutuamente com doces ilusões erradas, aduladoras, condescendentes, ou de qualquer outra forma loucas.
Erasmus, Desiderius
O elogio da Loucura
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