quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

palavras-imagens-mundo

Uma palavra é uma imagem que subsiste na nossa memória.

Tal imagem é independente da realidade que nos é presente: é produto do nosso passado. (todas as palavras que temos "hoje" são provenientes do nosso "ontem")

Designamos o que nos é presente com as palavras que temos.

Uma imagem que nos é presente torna-se dependente das palavras com que "olhamos" para ela.

Essa imagem é por isso mesmo, um conjunto de palavras. ( se falamos sobre essa imagem, se a opinamos, usamos sempre conjuntos de palavras: proposições, frases. ex.: podemos dizer que hoje está a chover: isto é uma designação para uma imagem presente. )

Uma palavra sozinha subsiste como imagem independente (ex.: podemos dizer que uma garrafa de vidro emite brilho quando lhe apontamos uma luz. Se isolarmos a palavra "brilho", ou "garrafa" elas subsistem e fazem sentido porque se referem a particularidades do nosso mundo: são imagens fixas. 

Por isso, desde que uma imagem ou palavra esteja fixa no nosso vocabulário, estando ela isolada, torna-se simples de a compreender. 

Tanto mais simples quanto mais antiga for. As palavras novas, ou as experiências novas, tal como um cão que acaba de se agrupar a uma matilha, serão tomadas como ameaças, são incertas, duvidosas, precisamente pelo facto de não fazerem parte da nossa - já consistente - cadeia de palavras/opiniões.

Outras opiniões só viriam abalar essa mesma consistência. (Explica-se aqui porque é que as pessoas são tão casmurras)

Nota: Os anúncios, na grande maioria, usam poucas palavras precisamente para serem de fácil compreensão.

A nossa memória sustenta as imagens que constroem a cadeia das nossas opiniões (palavras ou conjuntos de palavras: ideias)

Quanto menos imagens subsistirem na nossa memória, mais simples se apresentarão as coisas perante os nossos olhos.

Uma criança, com poucas palavras, nunca dirá muito acerca daquilo que lhe é presente. Nem tampouco um velho amnésico.

Então, o pensamento torna-se ridículo.

Não há pensamento.

Existem antes, imagens que são incutidas na nossa memória e que, a partir delas, tecemos a teia que designa o mundo que nos é presente.

Existem antes, hábitos que herdamos do ambiente em que crescemos (tal como acontece com os animais)
O acto de aprender uma palavra ou uma designação nova, pressupõe sempre palavras, imagens (experiências) já existentes previamente em nós. 

Aprender é isso mesmo: fazer uma apreensão de uma imagem, símbolo, palavra ou experiência, na nossa memória.

Não existe apreensão se não encaixarmos coerentemente a nova imagem na cadeia de imagens que já nos constrói. por exemplo: um indivíduo não aprende o significado de "fração", se não tiver já assimilado o significado de "unidade". 

Não tiramos muito partido de uma determinada experiência se ela não se revelar pertinente ou não se encaixar na nossa cadeia de ideias.

Os humanos só conseguem "pensar" na mesma medida que os animais "pensam".

Um animal desloca-se no seu território, ele conhece-o, ele domina-o.

O homem faz o mesmo. O que difere é somente o número de imagens perpetualizadas (palavras,símbolos,ideias) com que o humano designa o seu território - é um número muito superior ao número de imagens perpetualizadas pelos demais animais. 

Neste sentido, o mundo que o humano designa, é diferente do mundo que o animal designa.

Também difere o desígnio do mundo de humano para humano: dois indivíduos têm sempre cadeias de palavras/ideias/experiências diferentes.

Os meios técnicos são produtos de uma contínua perpetualização de imagens e aglomeração destas. Hoje temos milhões de desígnios para cada especificidade do nosso mundo. e cada vez surgem mais.

Irmos á lua ou ao espaço, parte da mesma necessidade que o animal tem de procurar alimento para além do seu perímetro. E no fundo, ambos fazem essencialmente o mesmo - um deslocamento em prol de um mesmo princípio: sobrevivência…. apesar de eu gostar mais de lhe chamar a "busca do prazer".

André Rúben
sex
9/12/11

sábado, 3 de dezembro de 2011

dada

"Eu redijo um manifesto e não quero nada, eu digo portanto certas coisas e sou por princípios contra manifestos (...). Eu redijo este manifesto para mostrar que é possível fazer as ações opostas simultaneamente, numa única fresca respiração; sou contra a ação pela contínua contradição, pela afirmação também, eu não sou nem para nem contra e não explico por que odeio o bom-senso." 


Tristan Tzara

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Sabedoria popular da grécia antiga

Segundo uma lenda antiga, o rei Midas perseguiu na floresta o velho Sileno, companheiro de Diónisos, e durante muito tempo sem poder alcança-lo. Quando conseguiu, por fim, apoderar-se dele, o rei perguntou-lhe qual era a coisa que o homem deveria preferir a tudo e considerar sem par. Imóvel e obstinado, o demónio não respondia. Até que por fim, coagido pelo vencedor, desatou a rir e proferiu as seguintes palavras: " Raça efémera e miserável, filha do acaso e da dor! E tu, porque me obrigas a revelar-te o que mais te valeria ignorar? O que tu deverias preferir não o podes escolher: é não teres nascido, não seres, seres nada. Já que isso te é impossível, o melhor que podes desejar é morrer, morrer depressa.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O carácter inalterável

ue o carácter seja inalterável, não é verdade no sentido estrito; pelo contrário, essa estimada proposição apenas significa que, durante a curta duração da vida dum homem, os motivos , que sobre ele actuam, habitualmente não podem riscar com a profundidade suficiente para destruírem as assinaturas impressas de muitos milénios. Mas se imaginássemos um homem de oitenta mil anos, então teríamos nele um carácter até absolutamente mutável: de modo que uma multidão de indivíduos diferentes se desenvolveria a partir dele. A brevidade da vida humana conduz a muitas afirmações erróneas acerca das características do homem.


Nietzsche

Equívoco do sonho

Nas eras de rude civilização primordial, o homem julgava travar conhecimento no sonho com um segundo mundo real; aí está a origem de toda a metafísica. Sem o sonho, não se teria encontrado motivo para uma separação do mundo. Também o fracionamento em alma e corpo está ligado à mais antiga interpretação do sonho, do mesmo modo a hipótese de uma aparência corpórea para a alma; por conseguinte, a proveniência de toda a crença nos espíritos e, provavelmente, também da crença nos deuses. "O morto continua a viver, pois aparece aos vivos no sonho": assim se concluía noutros tempos, através de muitos milénios.

Nietzsche

terça-feira, 12 de abril de 2011

Cidadania



 A vida como cidadão

   O cidadão vive dentro de 4 paredes, rodeadas por outras 4 paredes. Assim estará disposta qualquer Casa num ambiente citadino: rodeada pelas paredes das outras casas, como que sendo Ela uma pessoa, dentro da sua própria casa. Tais casas estarão sempre fechadas, pois ao abrir uma janela, o cidadão verá apenas outro interior: a casa da sua casa, ou seja, o seu próprio ambiente, em que qualquer céu, não tendo pois um horizonte, nunca será mais que um tecto, povoado por moscas com penas. E que cidadão devidamente preocupado não verá afinal as aves como sendo moscas? - as moscas do seu quarto. As suas janelas nunca poderão estar abertas. Elas abrem-se para si mesmas, abrem-se para dentro-de-si e nunca para aquilo que está lá fora; e isto de uma forma tão evidente, que a paisagem que se vê das janelas de uma casa da cidade é composta por janelas de casas.
   Qualquer transeunte apresentar-se-á ao cidadão como alguém inalcançável, por isso ele leva consigo um mini computador-portátil de bolso, com a sua lista de contactos de pessoas alcançáveis, ou antes, as pessoas que existem no seu mundo, na sua rede pessoal. Todas essas pessoas, inexistentes no campo sensorial do cidadão, constituirão o motivo da sua escolha, e o caminho a seguir. O seu motivo nunca será a sua ocupação presente, e tal ocupação resumir-se-á a um andar ligeiro, rumando em direcção ao motivo distante.

   O cidadão está distante daquilo que lhe é presente.
  
O cidadão não cria o seu próprio ambiente, ele desenvolve um ambiente que já foi criado pelos cidadãos que lhe precederam, regindo-se assim pelos valores inerentes ao conceito de cidadania, aos valores portanto, daqueles que já são cidadãos. A cidadania é uma aura do passado que persiste no hoje. É um carimbo que dita o rumo do hoje e que lhe dá um sentido. Mas o hoje alguma vez existiu antes? Então a cidadania traz ao hoje aquilo que não pertence ao hoje. Que deus é esse afinal, que estampa um carimbo no hoje? Que deus é esse que se impõe aos cidadãos? E não revela isto a contradição que existe em todos os que se declaram ateus?

   A cidadania é uma maneira de sermos aquilo que não-somos. É um valor que concede ao homem as características de um animal de estimação. E por muito terreno que tenha, por muita ferocidade que tenha, qual é o cão doméstico que não vive numa “gaiola” a depender do(s) seu(s) deus/deuses?

André Rúben
12/04/2011

quarta-feira, 30 de março de 2011

3 Poemas

Voz que se cala

Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as àguas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro
E dos sapos o brando tilintar
De cristais que se afogam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós.
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero destino...


Desejos Vãos

Eu queria ser o mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a àrvore tosca e tensa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o mar também chora de tristeza...
As àrvores também, como quem reza,
Abrem aos céus os braços, como um crente!

E o sol, altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia
E as pedras... essas... pisa-as toda a gente...


Ser poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do reino de Aquém e de Além dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter ca dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te assim, perdidamente...
É seres alma, sangue e vida em mim
E dizê-lo candando a toda a gente!



Florbela Espanca

quinta-feira, 17 de março de 2011

Fala a Loucura (2)

A loucura nas amizades
 
 E se agora vos provasse que sou eu que dou origem a todas as amizades? Nada mais fácil. Vou explicar-vos a coisa, tão claramente como o dia. Mas, para isso, não empregarei nem dilemas, nem sorites, nem nenhum desses raciocínios capciosos, de que ordináriamente se servem os nossos subtis lógicos. Contentar-me-ei em seguir as luzes do senso comum. Vou pois, começar.
   Fechar os olhos sobre os desmandos dos amigos, iludir-se com os seus defeitos, imitá-los, amá-los mais do que as próprias qualidades o merecem, admirar os seus vícios como se fossem virtudes, não será a isso que se chama loucura? Esse amante que beija com paixão um sinal que descobre na pele da amada; o outro que aspira com voluptuosidade o hálito fétido do seu amor; esse pai, cujo filho tem os olhos tortos, e lhe encontra o olhar mais terno, não constituirá tudo isto a mais pura loucura? Ah, sim, digam, se quiserem, que são loucuras e das mais rematadas; mas concordem, no entanto, que são loucuras que criam e mantêm as amizades. Não me estou a referir senão aos mortais, que nascem com todos os defeitos (...)
   Cupido, autor e pai de todas as ligações amáveis, não é um deus cego? Não toma, muitas vezes, a fealdade pela beleza? Por causa dele, todos os homens sentem alegria no objecto do seu amor; por causa dele, é que o velhote ama a sua velha companheira, como o moço ama a sua jovem amante. É isto que se vê por toda a parte, e é isto que sempre se acha ridículo. Mas, no entanto, esse ridículo é que forja e reforça os elos da amizade.
   O que acabo de dizer, acerca da amizade, aplica-se muito melhor ao casamento. Meu deus! Que infinidade de divórcios, de acontecimentos desastrosos se não daria todos os dias, se a lisonja, a condescendência, a dissimulação e os outros artifícios que todos são figuras da minha comitiva, não alimentassem incessantemente a união do homen e da mulher! Ah! como veríamos realizarem-se poucos casamentos, se o futuro noivo tivesse a prudência de se informar com cuidado de todas as diabruras que a sua jovem Agnes, que tão modesta e tão reservada parece, fez antes do casamento! E mesmo daqueles casamentos que se chegam a realizar, quantos haveria em que a união se mantivesse por longo tempo, se a negligência e a imbecilidade dos maridos os não cegasse, no que se refere aos modos e aos gestos das suas queridas esposas? Tudo isto temos de convir, não passa de loucura. Mas, no entanto, é esta loucura que faz com que a mulher agrade ao marido, e o marido á mulher; é ela que mantém a paz nos lares e impede os rompimentos e os divórcios. Troçam dos maridos, chamam-lhes enganados, chamam-lhes cornudos, e sei la quantos nomes feios, enquanto que o pobre homem seca com os seus beijos e as suas finjidas lágrimas da esposa infiel. Mas, não será ele muito mais feliz, por se entregar a este doce enlêvo, do que se se abandonasse aos tormentos e às inquietações, se se deixasse devorar de ciúmes, e se espalhasse, por toda a parte, a confusão e a desordem com cenas violentas ou trágicas?
   Em suma, se não fosse eu, não se encontraria na vida, nem uma só ligação que fosse, agradável e duradoura. Se não fosse eu, pouco tempo depois de reinar, o monarca tornar-se-ia insuportável para o seu povo, o criado para o amo, o mestre para o discípulo, o marido para a mulher, o hóspede para o hospedeiro, o camarada para o seu camarada, se não se preocupassem em se alimentar, mutuamente com doces ilusões erradas, aduladoras, condescendentes, ou de qualquer outra forma loucas.

Erasmus, Desiderius
O elogio da Loucura

segunda-feira, 14 de março de 2011

Ao ligar o carro

   O motor deu a sensação de se erguer nos bicos dos pés, de perder o equilíbrio, de o recuperar à custa de uma ginástica difícil de coluna, pegou, começou a inchar, a despir-se de gargarejes e de bolhas, e dissolvi com o esguicho e o limpa pára-brisas o continente cor de gesso de uma nódoa de fezes.

Antunes, António Lobo
O auto dos Danados

sexta-feira, 11 de março de 2011

Fala a loucura

A minha origem :
(...)
   Meu pai não me concebeu no seu cérebro, como outrora Júpiter concebeu essa vilã e impertinente Minerva; mas deu-me por mãe Neotete, a Juventude, a mais alegre, a mais bela, a mais viva de todas as ninfas. Também Não sou fruto do fastidioso dever conjugal, como o coxo do Vulcano; Nasci como disse o bom Homero, dos deliciosos arrebatamentos do amor. E para que não vos iludais, não foi quando já estava velho e quase cego, como o descreve Aristófanes, que Pluto me Engendrou; mas outrora, quando se sentia em todo vigor da sua idade, quando o fogo da juventude lhe ardia nas veias, e num desses agradáveis momentos, em que o nectar, bebido à mesa dos deuses, o enchera de bom humor.
   Quereis, por ventura, que vos diga, também qual o local do meu nascimento, porque hoje em dia acredita-se que o lugar em que uma criança viu pela primeira vez a luz do sol, é muito importante para a sua nobreza. Dir-vos-ei, no entanto, que não nasci nem na ilha flutuante de Delos, nem sobre as ondas do mar, nem nas profundas cavernas; vi o dia nas ilhas Afortunadas, país encantador, onde a terra, sem ser cultivada, produz os mais ricos frutos. O trabalho, a velhice, as doenças são ignoradas naqueles felizes campos. Ali não se vê crescer, nem malvas, nem tremoços, nem fava, nem nenhuma dessas outras plantas que não servem senão para as terras vulgares. O moli, a panaceia, o nepentes, a manjerona, as rosas, as violetas e os jacintos encantam por toda a parte o olfacto e a vista, e fazem, desses maravilhosos lugares, jardins mil vezes mais encantadores do que os jardins de Adónis.
   Aparecida no meio deste ambiente maravilhoso, o meu nascimento não foi anunciado com as minhas lágrimas; assim que nasci, viram-me sorrir graciosamente para minha mãe. Faria muito mal se invejasse Júpiter, por ter sido amamentado por uma cabra, pois as duas mais graciosas ninfas do mundo, Meteia, a Embriaguez, filha de Baco, e Apopedia, a Ignorância, filha de Pã, foram as minhas amas. Vê-las-eis, aqui, entre as minhas companheiras, no meio do meu séquito.
   Mas já que falei do meu séquito, é preciso que vo-lo apresente. Aquele que vos olha com um ar arrogante é o Amor-Próprio. Aquela, de rosto gracioso e mãos sempre prontas a aplaudir, é a Lisonja. Ali, podeis ver a deusa do Esquecimento, que se deixa dormir a cada instante, e parece já estar a pegar no sono. Mais além, a Preguiça, de braços cruzados e encostados aos cotovelos. Não reconheceis a Volúpia, pelas grinaldas, pelas coroas de rosas e pelas essências deliciosas com que se perfuma? Não reparais naquela que passeia por toda a parte os seus olhares descarados e impudentes? É a Demência. Aquela outra, cuja pele é tão lustrosa, e o corpo tão gordo e tão rabicundo, é a deusa das Delícias. Mas, entre todas estas deusas, também encontrareis deuses. Um é Comos, outro é Morfeu.
   Com o auxílio destes fiéis servidores, submeto ao meu domínio tudo quanto existe no universo. E é com eles que governo os que governam o mundo.

Erasmus, Desiderius
O Elogio da Loucura

quinta-feira, 10 de março de 2011

Valores

Em torno dos seus valores as almas giram.
E vivem na pontaria daqueles a que mais aspiram.

E com o dedo de apontar se fartam,
mas como não têm projéctil,
somente ao ar apontam.

(Falta-lhes a pontaria da fisga e da pedra
para saberem se no alvo acertam)

Mas mesmo com uma fisga e pedra, infinitos alvos hão de existir
e se foi difícil a fisga construír,
mais será de a destruír.
(Quem do seu próprio rumo abdicaria?)

Pois eis que  presente está,
uma semelhança em todas as qualidades e defeitos,
riquezas e pobrezas
... em todas as virtudes.

Uma constante que partilham todo e cada valor:
uma cela de imundo fedor.

E aqui da vossa opinião partilho:
"Tempo é Dinheiro"
sem tirar nem pôr.

André Rúben
10/03/2011

segunda-feira, 7 de março de 2011

Sobre o desenho

   Não acho uma qualidade o hábito de desenhar. Se é um hábito, é tão-somente um vício. Mas todos os temos, só não volta-ao-passado quem não tem memória.
   Acho que só existe um tipo de desenho: é sempre aquilo a que estamos sujeitos, incluíndo a nós próprios. Basta o suporte e o médium para contradizer o "parte de mim", o "vem de dentro".
   Desenho é uma maneira de existir e nós só existimos a par daquilo a que estamos sujeitos, a par, portanto, do que nos é exterior. Foi o lixo desta secretária que me deu este lápis e esta folha e é a luz que assalta este quarto através da janela que dá o contraste a este desenho que "escrevo".
   Desenhar é, tal como o nosso modo de existir, um duelo. E ganha mais com isso quem reconhece e respeita o adversário: o "não-eu".

André Rúben
07/03/2011

quarta-feira, 2 de março de 2011

Da Guerra e dos Guerreiros

   Não nos preocupamos em ser poupados pelos nossos melhores inimigos, nem tão-pouco por aqueles aquem amamos do fundo do coração. Deixai-me, portanto dizer-vos a verdade!
   Meus irmãos na guerra! Amo-vos de todo o coração. Eu sou semelhante a vós, sempre o fui. E sou também o vosso melhor inimigo. Deixai-me portanto, dizer-vos a verdade!
   Conheço o ódio e a inveja que vivem nos vossos corações. Não tendes a necessária grandeza de alma para ignorar o ódio e a inveja. Sejai, portanto suficientemente grandes para vos não envergonhardes disso!
   E se não podeis ser os santos do Conhecimento, sede pelo menos os seus guerreiros. Os guerreiros do Conhecimento são os companheiros e os precursores dessa santidade.
   Avisto muitos soldados: oxalá consiga ver muitos guerreiros! Chamam "uniforme" àquilo que vestem: que não seja uni-forme o que esse trajo oculta.
   Desejo que sejais daqueles cujo olhar está sempre à procura de um adversário -  do vosso adversário. Em alguns de vós existe o ódio que se descobre à primeira vista.
   Procurai um inimigo, fazei a vossa guerra, combatei pelos vossos pensamentos! E se o vosso pensamento sucumbir, que a vossa probidade, ao menos, cante vitória!
   Amai a paz como o intervalo para novas guerras, e a paz breve mais do que a prolongada.
   Não vos aconselho o trabalho, mas a luta. Não vos aconselho a paz, mas a vitória. Seja o vosso trabalho uma luta, seja a vossa paz uma vitória!
   Não é possível guardar silêncio e permanecer em paz senão quando se possui um arco e flechas: de outro modo o tempo passa em falatórios e em querelas. Seja a vossa paz uma vitória!
   Dizeis que é a boa causa que santifica a própria guerra? Mas eu vo-lo digo: é a boa guerra que santifica todas as causas.
   A guerra e a coragem fizeram mais grandes coisas do que a caridade. Não foi a vossa piedade, mas a vossa bravura que até hoje socorreu os miseráveis.
   "O que vem a ser o bem?", perguntais. O bem é ser valente. Deixai as meninas dizer: "O bem é o que é ao mesmo tempo bonito e comovente."
   Acusam-vos de serdes gente sem coração: mas o vosso coração é sincero, e a mim agrada-me a modéstia da vossa cordialidade. Tendes vergonha da vossa superabundância, como os outros têm o pudor da sua indigência.
   Sois feios? Seja, meus irmãos! Envolvei-vos em sublime, é o manto da fealdade.
   E quando a vossa alma engrandece, torna-se presunçosa, e na vossa grandeza há maldade. Conheço-vos.
   O que precisais, são inimigos para odiar, não inimigos para desprezar. Deveis sentir-vos orgulhosos do vosso adversário. Então os triunfos do vosso adversário serão também vossos.
   A revolta é a nobreza do escravo. Seja a obediência a vossa nobreza! Mesmo quando dais ordens, que seja por obediência!
   Para um autêntico guerreiro, "tu deves" soa melhor do que "eu quero". Mesmo aquilo de que mais gostais, procurai com que vo-lo ordenem.
   Que o vosso amor à vida seja o amor pela vossa maior esperança: e que a vossa mais elevada esperança seja o mais elevado pensamento da vida!
   Mas o vosso mais alto pensamento, deveis ouvi-lo de mim - é este: o homem é aquilo que deve ser superado.
   Vivei assim a vossa vida de obediência e de guerra. Que importa que a vida seja longa! Qual o guerreiro que quererá ser poupado?
   Não uso de branduras convosco, amo-vos de todo o coração, meus irmãos na guerra.


Nietzsche, Friedrich
Assim falava Zaratustra

dizer, dizir, dizor, dizur

Onde nenhuma linguagem advém, como no ser da pedra, da planta, e do animal, também aí não há abertura alguma do ente e, consequentemente, também nenhuma abertura do não ente e do vazio. (...) Cada língua é o acontecimento do dizer, no qual, para um povo emerge históricamente o seu mundo e se salvaguarda como reserva. O dizer projectante é aquele que, na preparação do dizível, faz ao mesmo tempo advir, enquanto tal, o indizível ao mundo. Num tal dizer é que se cunham de antemão, para um povo histórico, os conceitos da sua essência, a saber, da sua pertença histórica do mundo.

Heidegger, Martin
A origem da obra de arte

Saúde na "selva"

   Resta-nos ter sempre presente no espírito que todos os seres orgânicos se esforçam por aumentar em progressão geométrica e que todos, em algum período da sua vida, durante certas estações do ano, no decurso de cada geração ou em determinados intervalos, têm de lutar pela vida e sofrer grandes destruições. Quando reflectimos sobre esta luta, podemos consolar-nos com a plena convicção que a guerra não é incessante na natureza, que não se sente medo, que a morte é geralmente imediata e que são os seres vivos vigorosos, saudáveis e felizes que sobrevivem e se multiplicam.

Darwin, Charles
A origem das espécies

Um possível perfume

   Porquanto, caminhando os homens quase sempre sobre vias já exploradas por outros, e conduzindo-se como imitadores, e ainda que se não possa repetir inteiramente os caminhos alheios, nem atingir o valor dos que são imitados, deve um homem prudente seguir sempre o caminho dos grandes homens, e tratar de imitar os excelentes, a fim de que se o seu valor não os alcançar, ao menos receba deles algum perfume.

Machiavelli, Nicoló
O príncipe

Passar e esquecer

Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.

A recordação é uma traição á natureza,
Porque a natureza de ontem não é natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

Caeiro, Alberto (Fernando pessoa)
O Guardador de Rebanhos

Sobre a vulgaridade

   O que é por fim, a vulgaridade? (...) Para nos compreendermos uns aos outros, não basta empregarmos as nossas mesmas palavras; devemos empregar as mesmas palavras para o mesmo género de experiência interiores; devemos, por fim, ter experiências em comum com outra pessoa. Por isso, os homens de um mesmo povo entendem-se melhor entre si do que os que pertencem a povos diferentes, mesmo quando utilizam a mesma língua; ou melhor, quando os homens viveram durante muito tempo, sob condições semelhantes (de clima, de solo, de perigo, de necessidade, de trabalho), resultou daí algo que "se entende a si mesmo", a saber, um povo. Em todas as almas, uma mesma quantidade de experiências que regressam com frequência ganham a supremacia sobre aquelas que acontecem mais raramente. (...) A história da linguagem é a história de um processo de abreviação; a partir desta rápida compreensão, ligamo-nos uns aos outros de uma forma cada vez mais estreita. (...) Em cada amizade ou relação fazemos a seguinte prova: nenhum desses sentimentos dura muito tempo se se descobre que um dos dois, com as mesmas palavras, sente, pensa, fareja, deseja, e teme coisas diferentes do outro. (...) Pressupondo que, desde sempre, a necessidade apenas aproximou aqueles homens que, servindo-se de sinais semelhantes, podiam indicar necessidades semelhantes e experiências semelhantes, resulta daí, em geral, que a fácil cumunicabilidade da necessidade (isto é, no fundo, a vivência de experiências apenas mediocres e vulgares) deve ter sido a coisa mais poderosa entre todas as que, até ao presente dominaram o homem. os homens mais parecidos e mais vulgares estiveram e estão sempre em vantagem; os mais selectos, mais delicados, mais raros, mais difíceis de compreender permanecem facilmente sós, sucumbem, com o seu isolamento, aos acidentes e reproduzem-se pouco.

Nietzsche, Friedrich
Para além do bem e do mal

Das experiências

   Também no respeitante a experiências, notei que estas se tornam tanto mais necessárias, quanto mais se progride nos conhecimentos. Isto porque, para começar, é mais favorável fazer uso apenas das coisas que se apresentam espontaneamente aos nossos sentidos e que não poderiam passar-nos despercebidas, por muito pouco que seja a reflexão feita, do que procurar outras mais raras e complicadas. A razão para tal procedimento assenta no facto de aquelas mais raras frequentemente nos enganarem, quando desconhecemos as causas das mais comuns, e ainda porque as circunstâncias nas quais assentam são quase sempre tão específicas e pequenas que se torna difícil observa-las.

Descartes, René
O discurso do método

A Liberdade como possuidora do homem

   A liberdade não é somente aquilo que o entendimento vulgar deixa circular com este nome, a saber, o capricho que ocasionalmente emerge para nos inclinarmos na escolha, para este ou para aquele lado. A liberdade não é o desprendimento quanto ao poder ou não fazer. Mas a liberdade também não é a disponibilidade para o que é exigido e necessário (e assim, de qualquer modo, um ente). A liberdade é, antes de tudo isso (liberdade "negativa" ou "positiva"), a entrega á desocultação do ente enquanto tal.
(...)
   O homem não "possui" a liberdade como propriedade, mas, acima de tudo, trata-se do inverso: a liberdade, o ser-aí ek-sistente(*) e desocultante, possui o homem e isto de forma tão originária que só ela concede à humanidade a referência peculiar ao ente no seu todo enquanto tal, que fundamenta toda a história. Só o homem ek-sistente é histórico. A "natureza" não tem história.
  A liberdade assim entendida como deixar-ser o ente cumpre e realiza a essência da verdade, no sentido da desocultação do ente. A "verdade" não é nenhuma característica da proposição correcta, que é dita de um "objecto" por um "sujeito" humano e que, então, tem "valor" não se sabe em que âmbito; a verdade, pelo contrário, é a desocultação do ente, por meio da qual a abertura acontece. Todo o comportamento e atitude humanos estão expostos numa tal abertura. Por isso, o homem é segundo o modo da ek-sistencia.
 
Heidegger, Martin
Sobre a essência da verdade

(*) - a expressão "ek-sistencia" é aqui utilizada para referir a exposição das coisas, como essência em-si, sujeitas á desocultação do seu verdadeiro ente, e não como a sua mera existencia, que está conforme o conhecimento vulgarizado na época.

terça-feira, 1 de março de 2011

Deus aborrecido

   O mundo parecia-me um sonho, um poema inventado por um Deus, uma núvem irrisada abrindo-se diante dos olhos de um divino descontente.
   Bem e mal, alegria e tristeza, eu e tu - outras tantas nuvens irrisadas diante dos seus olhos criadores. O Criador queria desviar de si próprio o olhar: foi então que criou o mundo.
   Para quem sofre é uma alegria inebriante desviar os olhos do seu próprio sofrimento e esquecê-lo.

Assim falava Zaratustra
Nietzsche, Friedrich

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A Árvore na montanha

   Zaratustra tinha notado que um mancebo o evitava. E uma tarde, ao atravessar sozinho as montanhas que dominam a cidade denominada "Vaca Malhada", eis que encontrou no seu caminho esse mancebo sentado ao pé de uma árvore, dirigindo ao vale um olhar cansado. Zaratustra enlaçou a árvore a que o mancebo se encostava e disse:
   "Se eu quisesse sacudir esta árvore com as minhas mãos, não seria capaz.
Mas o vento, que não vemos, açoita-a e dobra-a como lhe apraz. As mãos invisíveis são hábeis entre todas em nos dobrar e açoitar á sua vontade."
   A tais palavras o mancebo levantou-se estupefacto e exclamou: "Estou a ouvir Zaratustra, e era precisamente nele que estava a pensar."
   Zaratustra replicou: "Que te leva a ter medo? O que sucede à árvore sucede ao homem.
Quanto mais aspira a subir para as alturas e para a luz, mais as suas raízes aspiram a mergulhar na terra, nas trevas, nas profunduras - no mal."
Sim, no mal! - repetiu o mancebo. - Disseste a verdade, Zaratustra. Já não tenho confiança em mim desde que aspiro a elevar-me ás alturas e já ninguém tem confiança em mim. A que se deve isto?
Mudo depressa de mais. O meu Eu de hoje contradiz o meu Eu de ontem. Com frequência salto degraus quando subo - e nenhum degrau mo perdoa.
Quando chego acima, acho-me sempre só. Ninguém me dirige a palavra, a solidão glacial obriga-me a tiritar. O que venho então procurar nas alturas?
O meu desejo e o meu desprezo crescem a par; quanto mais me elevo, mais desprezo o que se eleva. Que vai ele procurar nas alturas?
Como me envergonho de subir aos tropeções! como troço do meu fôlego ofegante! Como odeio aquele que tem asas! Como me sinto cansado de ter subido tão alto!"
   Aqui o mancebo calou-se. E Zaratustra, olhando atento a árvore a que estavam encostados, assim lhe falou:
   "Esta árvore cresceu solitária na montanha; ultrapassou no seu crescimento homens e animais.
   E se quisesse falar, ninguém havia que a pudesse compreender, tanto cresceu.
   Agora espera, espera sem cessar - mas o quê? Habita demasiado perto da morada das nuvens, decerto espera o raio que não tardará a vir."
   Quando Zaratustra acabava de lhe dizer estas palavras, o mancebo, dominado por uma violenta agitação, exclamou:
   "É verdade, Zaratustra, dizes bem. Ao procurar as alturas, aspirava á minha queda, e tu és o raio que esperava. Olha: que sou eu desde que tu nos apareceste? Foi a inveja que te tenho que me destruiu!" Assim falou o mancebo, chorando amargamente. Zaratustra, cingindo-o com o seu braço, levou-o consigo.
   E depois de andarem juntos durante algum tempo, Zaratustra começou a falar assim:
   "Tenho o coração dilacerado, Melhor do que as tuas palavras, dizem-me os teus olhos o perigo em que estás.
   Ainda não és livre, procuras ainda a verdade. Foi esta procura que te fez passar noites em claro, e exasperou a tua consciência.
   Queres escalar as livres alturas, a tua alma aspira às estrelas. Mas os teus maus instintos também têm sede de liberdade.
   "Os teus cães selvagens querem libertar-te; ladram de alegria na tua cave enquanto o teu espírito tende a abrir todas as prisões.
   Tu és ainda, como verifico, um prisioneiro que sonha com a liberdade. Ai! a alma destes presos torna-se prudente, mas também astuta e má.
   Até o espírito libertado precisa ainda de se purificar. Guarda ainda sobre si a sombra da sua prisão e o cheiro a bafio; é preciso ainda que a sua vista se purifique.
   É certo, conheço o perigo em que estás. Mas conjuro-te, em nome do meu amor e da minha esperança, não repudies nem o teu amor nem a tua esperança!
   Ainda te reconheces nobre, assim como nobre te reconhecem os que te querem mal e te olham com maus olhos. Fica sabendo que o homem nobre é uma pedra de toque no caminho de todos os outros.
   Até para os bons o nobre é um obstáculo, e até quando lhe chamam bom, é tão-somente uma maneira de o pôr de parte.
   O homem nobre quer criar alguma coisa nova e uma nova virtude. O bom deseja as velhas coisas, e conservar tudo o que é velho.
   E o perigo para o nobre, contudo, não é tornar-se bom, mas insolente, trocista e destruidor.
   Ah! quantos nobres corações assim conheci, que perderam a sua mais elevada esperança! E depois caluniaram todas as elevadas esperanças.
   Desde então têm vivido uma vida de minguadas aspirações, feitas de alegrias breves, sem ver mais longe de que um dia para o outro.
   "O espírito é também voluptuosidade", diziam. E quebravam as asas do seu espírito. Agora rasteja e macula tudo quanto consome.
   Noutro tempo pensavam fazer-se heróis; agora são apenas gozadores. O herói é para eles aflição e espanto.
   Mas, em nome do meu amor e da minha esperança, eu te conjuro: Não repudies o herói que há em ti! Venera piedosamente a tua mais elevada esperança!"

Assim falava Zaratustra.
Nietzsche, Friedrich